domingo, 19 de junho de 2011

O fato sem dedal

E quando a linha quebra,
o comboio já não prossegue viagem.
Remendam-se as agulhas desse longo pano,
e talvez possamos rumar ou desviar
à casa do mestre alfaiate.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Faca com sal



As crianças brincando na praia
Acabam por me confundir.
Estão sós, com castelos e baldes de areia,
Não conversam com os pais,
Mas a sua solidão é diferente da minha solidão.
 .
Eu entro nas casas,
Na mercearia - enquanto cresce a manhã - e peço açúcar.
O senhor sorri,
Mas nada mais
Nem um simples traço de felicidade
Apenas uma rua de cães magros
E paredes que não compreendo.
 .
Eu não entendo os livros
Da minha estante.
Gosto de um mar vazio
E de um mundo
Com pouco peso.
 .
E sei que estou só,
Ainda que possa sorrir
Quando a vida nada devolve.

Maquis



Lembra-te de mim.
 .
Lembra-te.
 .
Quando o mundo virar à esquina da rua deserta
Ouve o mar, já longe,
E o murmúrio do que fui à ultima hora, desse encontro.
 .
Lembra as vagas
Do tempo solto de maresia e fogo nos braços de lenha e chaminés
Altas, na elegância de Itália de Sofia e de um cipreste.
Eu estarei lá.
À espera do novo dia
No colo da manhã.
 .
Eu estarei à espera de um incêndio
Nas matas de Itália
A começar nesses olhos
Fundos
Misteriosos,
Sombrios de floresta.

O poema antes do sono

Ter sono
E insistir no livro.
Brigar - até tarde - em luta silenciosa
Por um verso branco
Num poema que vai inquietar
Toda uma noite
E toda uma vida.

Siroco

O artista criou a obra
Mas o vento destruiu
A folha e o mármore
E esculpiu um objecto
Digno de ser arte.

O artista morreu
Enquanto esculpia o vento
Enquanto talhava o siroco
Em pedra grande.

E quando o vento chegou,
Talhou e
Deu a obra por

                                                                                                   assinada.

Enquanto ouço


É uma tolice
A minha vida.
O tempo passa rapidamente na medieva ponte
E os salgueiros estão pálidos
Quando ouço Chopin
No receio de não acordar.
.
Confesso que nunca fui nos conselhos de Helena.
E nunca proferi a libertina confissão das rãs mortas no lago
Das águas onde desaparecem sentimentos de culpa.
 .
Confesso que não terei amado,
Uma vez que fugi à família de Roma com seus altos Conventos
E febre de freiras nas catacumbas
Prenhas de negrume.
 .
Mas tenho um Deus. Alto. Solene.
Um Deus que ocupa a floresta
De folhas não imaginadas,
Um Deus acolhedor
Da luz pálida das árvores de Chopin.
 .
Um Deus disfarçado de frade,
Procurando amor nas catacumbas.

2:09


Este mundo
Que anda à volta da minha cabeça
É tão feliz e triste.
.
É o mesmo que me expulsa do convés
E que traz o teu sorriso
Quando a roda vem de luz.

1:22

Satie conjuga com a noite de muitas ausências.
A rima e a solidão.
Antigamente, tudo era verbo.
Agora,
Penso que fiz qualquer coisa de errado,
E não sei ao certo
Como remendar o tempo de amar.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Esse rio

Levara consigo todas essas coisas.


O homem de cabeça baixa pedia-me, pela última vez,
A visão do barco napolitano e um mapa de Florença, que o recomendava
A embarcar no dia seguinte, por alturas do São João.

Eu fui feliz em Chiavenne - dizia.
Estive à esquerda da fama
E à direita de Deus.

Tinha tudo preparado: um barco de velas pintadas,
O archote que finta a nortada
E seis monges que rezavam
À ordem baixa do meu reino.

Mas errei por sete horas
Esse trajecto de cinco semanas.

Fiquei com ouro e pedras de um mausoléu
Dos mestres carpinteiros e pintores
Apesar de ter encorajado um escultor na destruição.

Muito sinceramente,
Deixei de ser a adorável criança
Nessa prosa de joelhos
E dos rasgados versos
Bem esfolados
Pelas manhãs.

Serei sempre prisioneiro dessa pequena nascente
Onde vivi a montante.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Primeira classe

A natureza é como um camarada de escola.

Se as flores murcharem no início do Verão
Terá existido,
Há muito tempo,


Um amigo.

Avenida João de Deus

Nem parece ela.

Está de gorro verde
No frio desta rua.

Ainda espera os filhos no rasto da escola
Que já não existe.
Esboça uma certa palidez no olhar alheio
De quem passa e vê as horas na montra da relojoaria.

Tenta saber se é tarde ou cedo
No tempo de abrir o portão e


Sorrir.

Ao chegar

Há uma casa desabitada nas colinas de Chiavenne.

Os corações endurecidos deixaram de entender o rigor
Tecido nesta frase.
São frades idosos que podiam contar com o amplo regresso de
Deus, mas preferem a sentença
Indignados com o carrasco local
De mãos grossas, frescas de intriga
Da propriedade que foi a leilão no ano em que o papa beijou a terra.

Eu entro na sala da casa abandonada.
As janelas imprimem uma autoridade demonstrada nas réstias de luz
E no modo como as plantas vão negociando a sua sobrevivência.
Em Barcelona vi flores assim.Mas eram viçosas
E escrevi cartas cheias desse perfume que entraram
Pelo cheiro matinal e pelo pão na mesa de quem jogou comigo.

E hoje estou desabitado como uma casa que conheceu muita gente.
O vento vai espalhando notícias pouco reais daquilo que tenho sido.

Eu nada abandonei. Só esqueci
Deus
E uma casa
Parecida comigo.
E se não houvesse tristeza
Eu não teria rido na estreita ruela.

É tudo como um barco que vai largando este cais.
É como a tua boca e a minha
Que nada sabem dizer nesse beijar.

E como é triste esses lábios tão ausentes
Eu sei que morro bem triste
Sem esse certeiro olhar.

Noites estrangeiras

Há muito que amo os ínfimos pormenores da estranha janela de sacada.


O sol deparava-se com a minha companhia
Nos tristes anos de um jardim obedecendo ao rigor das estações.
Existira sempre uma alma desesperada
Procurando luz
E a fachada da casa enegrecida.

Crescera musgo
Nesse tempo de abrir a janela
E fechar o Verão
No rigor das sanefas e do vento de Outubro.

Era como se chovesse nos livros
Em que os jardins se despem como dois amantes.
Como se um grito invadisse a porta exterior do pátio
Reaparecendo em sonhos no quarto verde,
No quarto dos ferrolhos
Por causa dos pés de altura
Numa noite de larápios.

E,
No escuro apreensivo,
As mãos eram ternas
Macias
Como o vento pousado
Cansado de enormes pregos
E de relâmpagos

Nas noites estrangeiras.

O que vais fazer com o resto da tua vida?

Não sei.
Vou ficar pelo movimento circulante da bicicleta que parou, agora,
À minha porta.

Sentar-me,

Pedal
A
Pedal


E revisitar
A infância
Traquina
E inocente
Do primeiro beijo
E das flores nos valados.

Vou pegar na bicicleta
E rodar tudo de novo


Até ser feliz.

5 da tarde

A flor do quintal
Está sempre à espera
Das viagens à Sicília
E dos cruzamentos que faria
Com seus ramos.
Em primeiro lugar, gosto muito desta roseira.
Ocupa a minha vida de espinhos

E quando pica (pica?),
Deixo de pensar
Nas coisas que deixam dor.

6 da tarde

Há um rosto encantador
Numa terreola miserável
Onde sofri de paixão.

Como pudeste ter a audácia de ter tanta beleza? - pergunto.
Eu posso perdoar o tempo
Olhar as tuas rugas

E manter o poema

quarta-feira, 8 de junho de 2011

É deste rumor que falavam quando eu era de fraldas no início de ser feliz.
A casa era imensa e alguém mergulhava
Nessa aflição de sermos muito novos
E do perigo na escada
E na janela de sacada.

Não havia défice
Mas alguma alegria por não haver excesso.

Isso foi no tempo dos amigos.
Das crianças que se sentavam soltas de baldes de areia e rodas desdentadas.

E agora
Quando perguntam quem és
Só dá vontade de abrir a casa da bicicleta e ser o pequeno rapaz
No lugar de qualquer poema.

A tenda

A tenda de Augusto era feita do mais pobre pano, no que respeita à mercadoria florentina.
Cosida, pela terceira vez, depois do Verão
Nos olhos que haviam rodado a fechadura do verdadeiro império.


O rapaz preparava o terreno, sem dizer uma palavra.
Os seus olhos resistiam ao terror, à precaução inútil
De cobrir as faces e forçar a passagem de escadas desviadas
A trezentos passos da floresta.


Por fim, moribundo, fechava a porta da tenda
No luar mais ou menos sombrio desse sentimento.
O corpo estremecia, preparando-se para qualquer contingência.


E o pano fechava.